Em uma conversa profunda e instigante com o renomado neurocientista Miguel Nicolelis, exploramos o universo da Inteligência Artificial (IA), um tema que domina as discussões atuais. Nicolelis, com sua vasta experiência na interface cérebro-máquina e sua visão crítica, desmistifica a IA, argumentando que ela não é, de fato, inteligente nem artificial. Acompanhe-nos nesta análise que abrange desde a definição de inteligência até os impactos da IA no mundo do trabalho e na democracia.

Para Nicolelis, inteligência é uma propriedade emergente da matéria orgânica, fruto da interação dos organismos com o ambiente e outros seres vivos. Essa propriedade, intrinsecamente ligada ao processo de seleção natural, permite a maximização das chances de sobrevivência. Portanto, atribuir inteligência a sistemas digitais, criados por humanos e desprovidos dessa história evolutiva, é um equívoco. A IA, segundo o neurocientista, é uma compilação de algoritmos que extraem relações estatísticas de grandes bancos de dados para tentar prever o futuro, uma “tentativa de criar um futuro sem futuro”, baseado na repetição do passado sem criatividade genuína. A computação analógica do cérebro, em constante transformação, contrasta com a computação digital da IA, baseada em regras fixas. O próprio Alan Turing, considerado o pai da IA, reconheceu a impossibilidade de reproduzir em laboratório o processo estocástico e aleatório da seleção natural que gera a inteligência.
Nicolelis alerta para a mudança radical no mundo do trabalho, onde a disputa não se dá mais pelos meios de produção, mas sim pela informação e pelo conhecimento. A automação, impulsionada pela IA, desequilibra as relações de trabalho, conferindo poder àqueles que detêm os sistemas de informação e conhecimento. Essa automação, que se expande para áreas como jornalismo, arquitetura e medicina, elimina o poder decisório humano, delegando-o a algoritmos que podem perpetuar vieses e preconceitos de seus criadores. O neurocientista critica a falta de transparência desses sistemas complexos, cujas decisões são difíceis de rastrear e justificar, impossibilitando a responsabilização por eventuais discriminações. O "fenômeno da conveniência", que nos seduz com a facilidade proporcionada pela tecnologia, mascara a subcontratação de nossas funções cognitivas, levando a um declínio na capacidade de pensar criticamente e criar.
O declínio cognitivo, evidenciado pela queda do coeficiente de inteligência e do vocabulário entre jovens, é um sinal alarmante do impacto da dependência tecnológica. A "igreja da tecnologia", como Nicolelis a chama, prega a salvação da humanidade através da tecnologia, ignorando os valores humanísticos que nos trouxeram até aqui. A greve dos atores de Hollywood, a primeira em décadas, é um reflexo da ameaça da IA à criatividade humana. Nicolelis questiona se estamos preparados para viver em um mundo sem poetas, pintores, cientistas e, principalmente, sem a essência da vida humana: a interação social genuína.
A manipulação política através de deep fakes e a disseminação de fake news, amplificadas pela IA, representam um perigo para a democracia. A crescente automação, motivada pela busca incessante do lucro, leva à desvalorização do trabalho humano e ao agravamento de problemas sociais. Nicolelis critica a crença de que a IA é imparcial, ressaltando que ela carrega os vieses de seus criadores. O neurocientista defende um novo renascimento, um investimento na valorização do trabalho humano, das artes e das ciências, para resgatar os atributos cognitivos que nos diferenciam como espécie. A união e a colaboração, a exemplo de outros grupos sociais na natureza, são essenciais para a sobrevivência da humanidade. O desafio, segundo Nicolelis, não é ser suplantado pela IA, mas sim evitar viver sob suas regras, em um mundo onde o hedonismo e a conveniência se sobrepõem ao instinto de sobrevivência.